Taiane Moreira de Mello[1]
A atual crise provocada pela pandemia do coronavírus (COVID-19), sem paradigmas na história recente, traz inúmeros efeitos econômicos colaterais provenientes de situação excepcional e imprevisível, com afetação direta nas relações locatícias não residenciais, em especial, para o comércio, que sofrerá, sem dúvidas, impactos em suas estruturas negociais.
Entendemos que a situação atual seja delicada tanto para o locador quanto para o locatário, cada qual com suas particularidades, portanto, o caminho do diálogo e do consenso sempre será a melhor alternativa.
Com o agravamento da crise do coronavírus, bem como em razão das medidas governamentais adotadas para o controle da pandemia, determinando, entre outros, o “fechamento” de “shopping center”, centros comerciais e estabelecimentos congêneres, a atividade fim de muitos empresários e pequenos comerciantes encontra-se inviabilizada, por motivos alheios à vontade das partes, por período incerto, impossibilitando, por vezes, a continuidade dos negócios.
No que tange aos contratos de locação não residencial devemos observar as cláusulas contratuais constantes de cada instrumento, e verificar se contemplam hipóteses de rescisão ou revisão contratual, como, por exemplo, situação de caso fortuito ou força maior.
O momento é adequado para a análise e debate sobre a pertinência da aplicação de determinados institutos jurídicos e cláusulas contratuais, uma vez que existem para a garantia das partes e devem ser aplicadas, especialmente, quando da ocorrência de evento incerto e imprevisível como o presente.
A situação atual é excepcional e imprevisível, afetando diretamente o uso dos imóveis locados para atividade comercial, especialmente para aqueles classificados como não essencial, configurando hipótese de força maior ou caso fortuito, conforme será demonstrado.
Neste contexto, destaca-se a decretação do Estado de Calamidade Pública e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), em âmbito nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.
Observe, à título ilustrativo, a medida provisória nº 927, de 22 de março de 2020, que dispõe sobre medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), destaca que a situação constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro medidas restritivas de isolamento social foram determinadas, impossibilitando o pleno uso e gozo de determinados imóveis desde 14 de março de 2020.
Em 13 de março de 2020, o decreto n° 46.970 estabeleceu medidas preventivas de enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19), determinado o isolamento social, suspendendo aulas nas escolas públicas e particulares, creches e instituições de ensino superior, bem como esportivos, shows, feiras científicas, entre outros, em local aberto ou fechado, cinemas, teatros e estabelecimentos afins, e orienta que donos de bares e restaurantes respeitem a distância de pelo menos um metro entre as mesas e cadeiras, a fim de reduzir as chances de contágio.
Em seguida, o Decreto nº 4.6973 de 16/03/2020, reconheceu a situação de emergência na saúde pública do Estado do Rio de Janeiro, determinando, entre outras medidas de isolamento social, o fechamento de shopping center, centro comercial e estabelecimentos congêneres, que permanece até a presente data.
Outras medidas restritivas, foram estipuladas pelo Decreto Municipal nº 47246, de 12/03/2020, que regulamentou a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Assim, em tempos de coronavírus, as relações locatícias não residenciais, conforme definição legal do artigo 51 da lei 8.245/91, sofrerão impactos sensíveis, e a manutenção dos contratos dependerá do fôlego dos empresários para a conservação do próprio negócio.
Ora, o artigo 22, I, da Lei de Locações, assim como do artigo 23, II, da mesma lei, ao estabelecerem aos contratantes a livre disponibilidade do imóvel locado, tanto para os fins da locação em si, obrigação do locador, como para o desenvolvimento das atividades previstas no contrato, obrigação do locatário, demonstram a possibilidade de revisão do contrato caso o uso do bem seja impossibilitado em razão da mudança da situação inicial.
Ao nosso sentir, a situação atual se enquadra na definição clássica de caso fortuito e força maior, prevista no artigo 393, parágrafo único, do Código Civil, com o rompimento do nexo causal nas obrigações e responsabilidades advindas das relações locatícias (artigo 396 do Código Civil).
Vejamos, aliás, o disposto no artigo 393 e 396, ambos do Código Civil, ao tratar das situações de caso fortuito e força maior.
Art.393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir.
Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.
Portanto, a situação atual configura, claramente, fato de força maior ou caso fortuito, que impacta diretamente nas relações contratuais, pois inviabiliza a manutenção da atividade fim de inúmeros locatários com a consequente perda de faturamento, tornando a manutenção do contrato excessivamente onerosa, sendo passível, inclusive de resolução, conforme, dispõe o artigo 478 e seguintes do Código Civil.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Assim, o fato atual é imprevisível e superveniente à locação, ensejando tanto a possibilidade de resolução, em situações mais graves, quanto a revisão dos contratos, de um modo geral, buscando um reequilibro na relação, com fundamento nos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil, conforme preconiza os parâmetros da teoria da imprevisão.
Por fim, importante sopesar que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme os ditames da boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, como dispõem os artigos 113 e 422 do Código Civil.
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019).
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Dessa forma, no momento, com sabedoria e serenidade, as partes envolvidas devem sopesar os prós e os contras de um litígio, custos e desgaste que lhe são inerentes, sendo o consenso o caminho mais célere e menos oneroso para ambas as partes.
Por fim, trazemos alguns questionamentos com resposta objetivas sobre os pontos suscitados no presente artigo.
1. Em razão dos impactos advindos do coronavírus o locatário pode pleitear a renegociação dos termos do contrato de aluguel?
Sim, diante dos argumentos expostos no presente, demonstrada a afetação na atividade fim do locatário, diante da boa-fé contratual poderá pleitear a revisão contratual por onerosidade excessiva, nos termos dos artigos nos artigos 393, 422, 479 e 480, todos do Código Civil.
Uma opção razoável seria calcular o período em que o imóvel está sem a possibilidade de uso pleno e pleitear uma revisão proporcional dos valores com base nos meses sem utilização.
2. O locatário pode pleitear a rescisão/resolução do contrato de locação?
Em regra, devem ser observadas as cláusulas específicas existentes no contrato celebrado entre as partes.
A situação atual configura, em tese, caso fortuito ou força maior que inviabiliza a continuidade de muitos negócios, sendo passível a aplicação da resolução por onerosidade excessiva, prevista no artigo 478 do Código Civil, a fim de não ser imputada multa ao inquilino quando da resolução.
3. O locador é obrigado a concordar com o locatário?
Em situações como a presente o bom senso deve prevalecer. Qualquer (re)negociação depende da aceitação de ambas as partes. Se não houver acordo extrajudicial, a questão poderá ser decidida pelo judiciário ou pela via arbitral, conforme o caso.
4. Como reencontrar o equilíbrio nas relações negociais?
Em situações de crise como a presente as partes devem ponderar os direitos e os interesses envolvidos, fazendo um exercício de empatia.
Por parte do locador importante ponderar o perfil do inquilino, o tempo de contrato, os custos de manutenção do imóvel, inerentes ao proprietário, bem como avaliar o mercado de locação após a pandemia, os riscos de crise no setor, bem como os custos e desgastes inerentes caso a questão seja levada ao judiciário – honorários contratuais, sucumbenciais e custas judiciais.
O Locatário, por sua vez, deve considerar os impactos atuais e a longo prazo no negócio, custos de manutenção, funcionários e fornecedores, capital de giro, bem como sua capacidade de retomada e manutenção do negócio após a crise.
5. A renegociação pode ser realizada mediante aditivo contratual?
Sim. Interessante que as partes tenham o auxílio e orientação de um advogado para elaboração do aditivo contratual, estabelecendo cláusulas e condições específicas que atendam a demanda e tragam maior segurança jurídica para as partes.
6. Caso não haja acordo entre as partes, quais as medidas judiciais possíveis?
Diante da situação concreta será avaliada a via judicial adequada. Em síntese, caso o locatário entenda pela rescisão contratual por caso fortuito ou força maior, poderá realizar a entrega das chaves em juízo, caso entenda pela revisão poderá pleitear pela via judicial, consignando os valores que entende adequado em virtude da crise. Já o locador poderá, a seu critério, ingressar com ação de despejo por falta de pagamento ou pagamento a menor, e cobrança de eventuais valores em atraso e multas contratuais.
Por fim, diante da complexidade da questão e da ausência de precedentes na história recente, não há um prognóstico seguro sobre os entendimentos judiciais a respeito do tema.
[1] Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes. Pós-graduada em Ciências Criminais e Segurança Pública pela UERJ. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes. Advogada. E-mail: taiane@melloelopes.com.br.
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